Como não fazer apologética: a falácia do espantalho


Rev. Marcelo Lemos

Comecei minha carreira teológica como professor de Escola Dominical numa saudosa congregação das Assembleias de Deus, na cidade de Santo André, SP. Também foi aquela comunidade que autorizou minha entrada no seminário teológico. Desde aquela época tenho grande apreço pelos autores apologéticos, dentre os quais alguns de meus autores preferidos, como Francis Schaffer, Gordon Clark, C.S. Lewis, Greg Bahnsen, G.K. Chesterton, Willian Lane Craig, N.T Wright (que tem uma obra fantástica a respeito da Ressurreição),  Paulo Romeiro e tantos outros. 

Apenas muito tempo depois me daria conta de haver um extenso debate sobre a natureza da própria apologética e suas metodologias. No entanto, mais importante que debatermos, por exemplo, as divergências entre evidencialismo e presuposicionalismo, creio existir algo ainda mais importante: o  fazer apologética com objetividade e integridade intelectual. Para os cristãos os fins não podem justificar os meios, sua apologética não deve importar-se somente com "vencer" um debate, se é que tal coisa existe. "Porque nada podemos contra a verdade, porém, a favor da verdade" (II Coríntios 13:8).  

Talvez, o risco mais comum na apologética cristã, especialmente na evangélica, seja a falácia do espantalho. Não é a única, mas nesse primeiro artigos abordaremos esta somente. Uma definição encontrada no Wikipédia apresenta a falácia do espantalho da seguinte forma: "é um argumento em que a pessoa ignora a posição do adversário no debate e a substitui por uma versão distorcida, que representa de forma errada, esta posição". Daí ser chamada também de falácia  do homem de palha: uma vez falsificada, por desonestidade ou ignorância, a posição do 'adversário', fica muito mais fácil 'vencê-lo' em minha argumentação.  O problema é que, na realidade, a estratégia não lida com a verdadeira posição do 'adversário', mas com uma falsificação da mesma.

Me permita uma ilustração: temos o Irmão “A” que é totalmente contra o consumo de bebidas alcoólicas, e o Irmão “B”, que defende a prática da moderação. Imagine que num debate o Irmão “A” afirme que “B” não vê problema algum em cristãos bêbados. Note que, uma vez permitido o uso de bebidas alcoólicas, é possível que alguém se exceda, mas “B” jamais disse concordar com isso. No entanto, com tal estratégia fica fácil para “A” refutar a posição de “B”, pois é evidente que o alcoolismo jamais pode ser tolerado entre os cristãos. A tática é, notoriamente, desonesta. O que “A” está atacando não é verdadeira opinião de “B”, mas uma falsificação. Talvez para “A”, a posição de “B” tenha semelhanças com a defesa da embriaguez, mas seria a mesma semelhança entre um espantalho e um homem de verdade. Daí o nome “falácia do espantalho”.

A seguir apresento mais algumas ilustrações dessa falácia. Infelizmente, todas elas aconteceram de fato. 

(1) O caso da acusação de idolatria contra cristãos reformados. 

Uma tempestade surgiu quando certa Igreja reformada usou uma ilustração de Jesus em seu boletim. Rapidamente uma acusação de idolatria tomou proporções inimagináveis e, na opinião dos acusados, desproporcionais. Porque, qualquer um que consulte os símbolos de fé daquela Igreja, bem como sua Declaração de Princípios e os seus  Cânones, notará que a mesma adere integralmente aos chamados "Cinco Solas" da Reforma, e jamais autorizou qualquer uso devocional ou litúrgico da referida ilustração, ou de qualquer outra. O boletim da Igreja usou a tal ilustração apenas para ilustrar, exatamente como se dá, por exemplo, numa bíblia destinada ao público infantil.

A acusação, porém, considerou que a ilustração de Cristo era uma prova de que a Igreja havia abraçado a idolatra. A partir disso ficou 'fácil' produzir barulho suficiente para dar ares de seriedade à uma acusação desprovida de provas, e surda para os argumentos da outra parte. Um típico exemplo da falácia do homem de palha, que esmurra o nariz de um frangote a sai contando que derrubou o Golias. 


(2) O caso da acusação contra a Bíblia da Reforma (Lutero). 

Outra “tempestade em copo d'água” aconteceu por ocasião dos 500 Anos da Reforma. Uma editora brasileira lançou uma "Bíblia da Reforma", em memória do reformador Martinho Lutero. Pouco tempo depois, as redes sociais estavam repletas de acusações, memes e mais acusações contra a obra. As acusações usavam termos como "traição", "pelagianismo", "arminianismo", "gato por lebre", e daí para pior. 

Apesar do barulho, tudo não passou de falácia. A Reforma Protestante, como se sabe, teve início com os protestos do monge Martinho Lutero, na Alemanha. É sabido que ele não foi o único reformador importante, outros nomes foram sendo somados ao seu por toda a Europa. Calvino, na França, e Cranmer na Alemanha, são alguns exemplos. No entanto, o que se comemora no dia 31 de Outubro é a memória de Lutero, que nessa data teria pregado suas 95 Teses nas portas da Igreja do Castelo de Witemberg. Justificadamente, a obra publicada foi em memória de Lutero, e buscou representar o pensamento e a teológica luterana. Não apenas faz sentido, é uma coisa óbvia, ignorada apenas por aqueles que talvez se vejam como sendo 'mais' reformados que os outros. 

Evidentemente, ninguém está obrigado a concordar com essa ou aquela obra, e isso inclui a Bíblia da Reforma. Mas, até para discordarmos de uma obra, autor ou denominação, precisamos lidar com as divergências de uma perspectiva adequada. Porque a obra não pode ser chamada de “Bíblia da Reforma”, se sua intenção é celebrar a memória de Lutero, o iniciador de todo o processo? Porque alguns foram ainda mais longe, dizendo que a obra havia traído o pensamento do próprio Lutero? Alguns argumentaram que Lutero haveria sustentado uma Doutrina da Graça igual a de Calvino, ou seja, que ele teria defendido o que após o Sínodo de Dort se convencionou chamar de “Cinco Pontos do Calvinismo”. Essa informação, contudo, não resiste a uma análise cuidadosa dos fatos. É verdade que Lutero, e os luteranos confessionais, acreditam na Doutrina Eleição, mas rejeitam ideias como, por exemplo, a Expiação Limitada. Nem Lutero, nem os luteranos confessionais, jamais foram “Cinco Pontos”. Qualquer dúvida sobre isso pode ser dirimida simplesmente conferindo o famoso Livro de Concórdia, publicado sob a supervisão do próprio Lutero.

Conclusão

A estes dois exemplos poderíamos somar alguns outros. Por exemplo, as acusações daqueles que dizem que o ministro anglicano John Stott, teria sido conveniente com o liberalismo que ameaça a Igreja da Inglaterra. Ou daqueles que, mais recentemente, inundaram as redes sociais com acusações e meias-verdades contra o grande evangelista Billy Graham, após seu falecimento. É preciso compreender que, especialmente no caso das seitas e heresias, o outro lado geralmente está convencido de sua posição, e não é incomum que disponham de um grande arsenal argumentativo, e até mesmo de apologistas com preparo acadêmico de primeira ordem (como no caso dos Mórmons, por exemplo). 

Verificar os fatos, ouvir o outro lado da questão, e não fazer juízos apressados ou baseados em pesquisa parcial, são regras de ouro para um bom apologista. É possível que todo esse cuidado torne o trabalho do apologista mais difícil, porém, também tornará o resultado mais completo, confiável e eficiente. Não existe maior desserviço para a causa cristã que o apologista sem preparo, preconceituoso e irresponsável, pois tudo que ele consegue é levar o 'oponente' a entrincheirar-se ainda mais em suas heresias. 

Comentários

  1. Parabéns aos criadores. O blog está lindo!
    Deus nos abençoe e vamos caminhar juntos, com a graça de Deus, neste grande projeto pra glória do Eterno.

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